Ela
fez um sinal para que eu parasse o carro.
-
Bom dia! Um sorriso largo estampa seu rosto.
-
Bom dia. Um sono absurdo estampa o meu.
-
Você poderia me dar uma carona até a rodoviária?
- A
senhora vai até a rodoviária sozinha? Perguntei, preocupada por ser uma pessoa
tão idosa.
-
Sim! Fitou-me, como quem lê meus pensamentos.
-
Tudo bem, para onde a senhora vai?
-
Vou ao cemitério arrumar o túmulo do meu falecido marido.
- Ah
é? Mas é a senhora quem faz isso? Não tem filhos, netos, parentes?
-
Tenho três filhos e cinco netos. Mas é que eu gosto de cuidar do túmulo do meu
marido pessoalmente.
-
Olha, não quero ser desagradável, mas estou preocupada com o fato da senhora
sair sozinha. Poderia, ao menos, me dar o número do seu celular e o número do
celular de alguém da sua família. Preciso me certificar de que estou fazendo a
coisa certa, antes de colocar a senhora numa fria.
-
Tudo bem. Eu entendo. Aqui está o número do meu filho. Pode ligar pra ele do
meu celular.
Liguei
e confirmei. O nome dela é D. Lúcia, tem 102 anos, é teimosa, vaidosa,
determinada e independente. Sempre cuidou do marido e o marido sempre cuidou
dela. Eram inseparáveis. Agora ela cuida do túmulo dele e se cuida.
Pedi
desculpas, mais uma vez, pela curiosidade, mas é que ela estava com as unhas
pintadas, o cabelo bem arrumado, a roupa impecável, com sapato, bolsa e
acessórios combinados. Não me contive e
perguntei o motivo de tanto capricho.
- Vou
te explicar. Quando o meu marido ainda estava vivo, ele cuidava de mim e eu
cuidava dele. Éramos amigos. Ele gostava muito de me ver arrumada. Agora eu
ando sempre arrumada. Assim, no dia em que eu for ao encontro dele, estarei
impecável como ele gostava de me ver.
Deu
uma risada e disse: Você acredita que eu nem era vaidosa antes de conhecer o
meu marido? Verdade! Ele vivia comprando coisas, maquiagens, roupas e me
tratava como uma rainha. Para expressar a minha gratidão, eu me arrumada para
ele. Foi assim que me tornei tão vaidosa.
-
Que lindo! Fiquei emocionada.
Ela
perguntou se eu queria ouvir mais e eu respondi que sim.
- Eu
sou do interior de São Paulo, de uma cidade bem pequena chamada Palestina. Fica
pertinho de São José do Rio Preto. Minha cidade deve ter, no máximo, 11 mil
habitantes. É bem pequena mesmo. Lá, todo mundo se conhece. Meu marido era meu
vizinho. Nós brincávamos juntos quando crianças, estudamos juntos, fomos à luta
para conseguir emprego, nos casamos e nos mudamos para Brasília, assim que o
Presidente Juscelino Kubitschek anunciou a construção da capital. Viemos para
cá com o sonho de ficarmos ricos, mas não ficamos. Meu marido trabalhou na
Novacap, o órgão responsável pela urbanização de Brasília, e eu virei
professora do primário. Demos muito duro por aqui e com a chegada dos filhos,
tivemos que lutar muito para nos manter. Mas sabe o que foi importante nisso
tudo? Meu marido e eu nunca desistimos um do outro, mesmo nos piores momentos.
Eu fico triste de ver que, hoje em dia, os casais se separam por qualquer
motivo. Nossa vida não foi só flores. É impossível que duas pessoas,
completamente diferentes, dividam o mesmo espaço e não se desentendam. Sempre
haverá desentendimentos. Mas tem que haver tolerância, compreensão e respeito,
senão não dá certo. Eu tenho um filho que se separou recentemente. Meus netos
ficaram com a minha nora. Ele diz que assim é melhor, mas eu não sei até onde
isso pode ser verdade. Ele sai com amigos, bebe muito, volta tarde e no dia
seguinte está com o olhar triste. Contei a ele um episódio em que eu fiquei tão
furiosa com o meu marido, por ele ter se atrasado para um compromisso que
considerava importante, que peguei uma camisa que ele gostava muito e rasguei.
Ele ficou furioso comigo. Ficamos meses sem trocar uma só palavra. Mas nunca
passou pelas nossas cabeças uma separação. Eu não conseguiria vislumbrar uma
vida sem ele. Acho que ele pensava da mesma forma. Agora que ele se foi, eu
cuido do que restou. O túmulo e eu.
Fiquei
estarrecida com a última afirmação e perguntei qual era a idade dela quando ele
se foi, já que ela me parece uma mulher cheia de vida.
- Eu
tinha 65 anos e ele 68 anos.
- A
senhora nunca pensou em ter outro companheiro?
Ela
riu alto. – Não!
-
Por que?
- A
pergunta certa é ‘para que’?
Dei
risada.
-
Minha filha, eu tinha 65 anos na época. Achava que nunca passaria dos 70 anos.
Quase morri quando ele se foi. Fiquei muito triste por muito tempo. Mas um dia
eu tive um sonho. Ele apareceu pra mim e perguntou por que eu estava tão
descuidada e disse que não gostava de me ver assim. No dia seguinte, fui ao
salão de beleza, arrumei o cabelo e as unhas, depois tomei um banho de loja. Na
época, tinha uma loja aqui em Brasília chamada Mesbla e outra chamada Sears.
Fui nas duas. Comprei um monte de roupas novas. Você chegou a conhecer estas
lojas do Conjunto Nacional ou não é do seu tempo?
Respondi
que sim. Ela me pareceu aliviada por não estar citando nomes estranhos.
-
Desde então, resolvi me cuidar para ele e cuidar do túmulo dele. É o meu jeito
de mantê-lo pertinho de mim. Meus filhos ficam preocupados comigo, mas eu
prefiro ir sozinha e não incomodar ninguém com as minhas coisas.
Chegamos
à rodoviária. Ela agradeceu e perguntou se eu aceitaria tomar um café, num
outro dia qualquer. Eu respondi que seria um prazer. Ela se foi, a passos
lentos, arrumando a saia, segurando a bolsa elegantemente e deixou para mim uma
lição de vida. Ou várias. Mas vou deixar estas lições ao seu critério e ao seu
modo de interpretar este encontro fictício com a minha nova amiga de 102 anos.