terça-feira, 11 de novembro de 2014

Um encontro fictício com uma senhora de 102 anos.



Ela fez um sinal para que eu parasse o carro.
- Bom dia! Um sorriso largo estampa seu rosto.
- Bom dia. Um sono absurdo estampa o meu.
- Você poderia me dar uma carona até a rodoviária?
- A senhora vai até a rodoviária sozinha? Perguntei, preocupada por ser uma pessoa tão idosa.
- Sim! Fitou-me, como quem lê meus pensamentos.
- Tudo bem, para onde a senhora vai?
- Vou ao cemitério arrumar o túmulo do meu falecido marido.
- Ah é? Mas é a senhora quem faz isso? Não tem filhos, netos, parentes?
- Tenho três filhos e cinco netos. Mas é que eu gosto de cuidar do túmulo do meu marido pessoalmente.
- Olha, não quero ser desagradável, mas estou preocupada com o fato da senhora sair sozinha. Poderia, ao menos, me dar o número do seu celular e o número do celular de alguém da sua família. Preciso me certificar de que estou fazendo a coisa certa, antes de colocar a senhora numa fria.
- Tudo bem. Eu entendo. Aqui está o número do meu filho. Pode ligar pra ele do meu celular.
Liguei e confirmei. O nome dela é D. Lúcia, tem 102 anos, é teimosa, vaidosa, determinada e independente. Sempre cuidou do marido e o marido sempre cuidou dela. Eram inseparáveis. Agora ela cuida do túmulo dele e se cuida.
Pedi desculpas, mais uma vez, pela curiosidade, mas é que ela estava com as unhas pintadas, o cabelo bem arrumado, a roupa impecável, com sapato, bolsa e acessórios combinados.  Não me contive e perguntei o motivo de tanto capricho.
- Vou te explicar. Quando o meu marido ainda estava vivo, ele cuidava de mim e eu cuidava dele. Éramos amigos. Ele gostava muito de me ver arrumada. Agora eu ando sempre arrumada. Assim, no dia em que eu for ao encontro dele, estarei impecável como ele gostava de me ver.
Deu uma risada e disse: Você acredita que eu nem era vaidosa antes de conhecer o meu marido? Verdade! Ele vivia comprando coisas, maquiagens, roupas e me tratava como uma rainha. Para expressar a minha gratidão, eu me arrumada para ele. Foi assim que me tornei tão vaidosa.
- Que lindo! Fiquei emocionada.
Ela perguntou se eu queria ouvir mais e eu respondi que sim.
- Eu sou do interior de São Paulo, de uma cidade bem pequena chamada Palestina. Fica pertinho de São José do Rio Preto. Minha cidade deve ter, no máximo, 11 mil habitantes. É bem pequena mesmo. Lá, todo mundo se conhece. Meu marido era meu vizinho. Nós brincávamos juntos quando crianças, estudamos juntos, fomos à luta para conseguir emprego, nos casamos e nos mudamos para Brasília, assim que o Presidente Juscelino Kubitschek anunciou a construção da capital. Viemos para cá com o sonho de ficarmos ricos, mas não ficamos. Meu marido trabalhou na Novacap, o órgão responsável pela urbanização de Brasília, e eu virei professora do primário. Demos muito duro por aqui e com a chegada dos filhos, tivemos que lutar muito para nos manter. Mas sabe o que foi importante nisso tudo? Meu marido e eu nunca desistimos um do outro, mesmo nos piores momentos. Eu fico triste de ver que, hoje em dia, os casais se separam por qualquer motivo. Nossa vida não foi só flores. É impossível que duas pessoas, completamente diferentes, dividam o mesmo espaço e não se desentendam. Sempre haverá desentendimentos. Mas tem que haver tolerância, compreensão e respeito, senão não dá certo. Eu tenho um filho que se separou recentemente. Meus netos ficaram com a minha nora. Ele diz que assim é melhor, mas eu não sei até onde isso pode ser verdade. Ele sai com amigos, bebe muito, volta tarde e no dia seguinte está com o olhar triste. Contei a ele um episódio em que eu fiquei tão furiosa com o meu marido, por ele ter se atrasado para um compromisso que considerava importante, que peguei uma camisa que ele gostava muito e rasguei. Ele ficou furioso comigo. Ficamos meses sem trocar uma só palavra. Mas nunca passou pelas nossas cabeças uma separação. Eu não conseguiria vislumbrar uma vida sem ele. Acho que ele pensava da mesma forma. Agora que ele se foi, eu cuido do que restou. O túmulo e eu.
Fiquei estarrecida com a última afirmação e perguntei qual era a idade dela quando ele se foi, já que ela me parece uma mulher cheia de vida.
- Eu tinha 65 anos e ele 68 anos.
- A senhora nunca pensou em ter outro companheiro?
Ela riu alto. – Não!
- Por que?
- A pergunta certa é ‘para que’?
Dei risada.
- Minha filha, eu tinha 65 anos na época. Achava que nunca passaria dos 70 anos. Quase morri quando ele se foi. Fiquei muito triste por muito tempo. Mas um dia eu tive um sonho. Ele apareceu pra mim e perguntou por que eu estava tão descuidada e disse que não gostava de me ver assim. No dia seguinte, fui ao salão de beleza, arrumei o cabelo e as unhas, depois tomei um banho de loja. Na época, tinha uma loja aqui em Brasília chamada Mesbla e outra chamada Sears. Fui nas duas. Comprei um monte de roupas novas. Você chegou a conhecer estas lojas do Conjunto Nacional ou não é do seu tempo?
Respondi que sim. Ela me pareceu aliviada por não estar citando nomes estranhos.
- Desde então, resolvi me cuidar para ele e cuidar do túmulo dele. É o meu jeito de mantê-lo pertinho de mim. Meus filhos ficam preocupados comigo, mas eu prefiro ir sozinha e não incomodar ninguém com as minhas coisas.
Chegamos à rodoviária. Ela agradeceu e perguntou se eu aceitaria tomar um café, num outro dia qualquer. Eu respondi que seria um prazer. Ela se foi, a passos lentos, arrumando a saia, segurando a bolsa elegantemente e deixou para mim uma lição de vida. Ou várias. Mas vou deixar estas lições ao seu critério e ao seu modo de interpretar este encontro fictício com a minha nova amiga de 102 anos.


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