sexta-feira, 1 de março de 2013

Cegueira

Enquanto procurava imagens de flores no Google Images para desejar um bom dia aos meus amigos de Facebook, me deparei com uma imagem que me deixou paralisada: Duas crianças africanas famintas com as mãos estendidas, uma para pegar o alimento doado por algum voluntário e a outra com uma flor murcha sendo entregue a este mesmo voluntário.
Fiquei pensando na quantidade de "posts" que publicamos, diariamente, falando de inveja, de lições de moral, de poesias, de alfinetadas, de bichinhos bonitinhos, de bichinhos abandonados mas pouquíssimas falando destas crianças que foram abandonadas pelo mundo.
Não falo só da África. Estas crianças estão espalhadas por toda parte. Aqui mesmo, na capital federal do Brasil, temos crianças dormindo debaixo de viadutos, abandonadas à própria sorte e expostas à um mundo cada vez mais cruel, desumano e indiferente.
Certa vez, um menino desses de rua me abordou pedindo dinheiro para comer. Falei que não daria o dinheiro porque sei que alguém vai tirar dele, mas estaria disposta a pagar uma refeição para ele. Ele aceitou e paramos no primeiro restaurante, onde um dos garçons nos atendeu a contragosto, já que o menino se encontrava num estado lamentável de higiene. Ele pediu um daqueles pratos prontos, com direito à tudo. Comeu de forma metódica, separando sempre uma parte de todos os ítens que estavam em seu prato. Fiquei intrigada e perguntei o porquê daquela atitude. Ele então me disse que nem todas as pessoas entendem que ele e seu irmão querem apenas comer e sempre acham que querem comprar drogas ou bebidas alcoólicas. Aquela porção separada em seu prato era para o seu irmão de cinco anos que o estava esperando perto do semáforo.
Travei uma batalha árdua com minhas lágrimas e o confortei dizendo que pagaria outro prato de comida para o irmão mais novo.
Perguntei onde estavam os pais dele. Ele me disse que não conheceu o pai e que a mãe estava "muito doente" internada num hospital. Perguntei então se não tinha mais parentes e ele fez que não com a cabeça.
Seu nome é João e o nome do irmão é Isaac. Tinha sete anos.
Assim que ele terminou de comer, pedi que trouxesse o irmão para se alimentar também. Ele correu e voltou logo em seguida com o irmãozinho, mostrando para ele a "dona legal" que ia pagar a comida. Assim que o irmão terminou de comer, perguntei onde a mãe deles estava internada, mas eles não souberam me dizer. Fiquei pensando numa forma de não deixar aquelas duas criaturinhas abandonadas na rua e logo descartei as instituições do governo, visto que o ambiente seria tão ruim quanto o da rua.
Como eu morava perto do Centro Islâmico, resolvi arriscar e pedir ajuda ao sheikh para encontrar uma solução para o problema dos dois anjinhos. Ele ficou reticente e disse que de qualquer forma teria que avisar as autoridades brasileiras sobre o caso deles. Concordei, visto que não poderia hospeda-los em minha casa.  Havia um dormitório abandonado no Centro Islâmico e consegui, depois de muita teimosia, fazê-los tomar um banho enquanto saí para conseguir umas roupas com uma amiga que tinha filhos da mesma idade. Na volta, os dois estavam dormindo um sono profundo, talvez resultante do cansaço de vários dias de sono irregular e de comer sobras em lixeiras. Passados dois dias, consegui arrancar deles o nome completo da mãe, que estava internada no Hospital de Base com uma pneumonia grave. Fui visita-la e contei que tinha encontrado seus filhos. Ela chorou muito e disse que os tinha deixado aos cuidados de uma vizinha, que era empregada doméstica e que morava em Santo Antônio do Descoberto. Tratei de acalma-la, dizendo que seus filhos estavam bem e relatei o que tinha acontecido. Ela recebeu alta quatro dias depois e fui busca-la no hospital em companhia de João e Isaac. Consegui também algumas doações com os meus colegas de trabalho e algum dinheiro, já que a dona Josilda, a mãe, não poderia trabalhar tão cedo.
Foi aí que me dei conta que devem haver milhares de joões e isaacs pelas ruas da cidade, do país, do mundo, entregues à própria sorte e incompreendidos pelos corações endurecidos, que sequer notam sua presença.
Não é só na África que temos crianças famintas. Não é só para lá que precisamos mandar doações e coloca-las em mãos de ONGs duvidosas. Que tal começar por aqui mesmo? Que tal lançar um olhar mais cuidadoso aos que estão à sua volta. Uma atitude simples pode mudar a vida de uma pessoa. O que seria de João e Isaac se eles tivessem se perdido de sua mãe? Nem todos os que estão nas ruas são bandidos que vão te assaltar. Muitos só precisam de um minuto da sua atenção e um pouco de espirito humano.

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