Um barulho ensurdecedor tomava conta das ruas. Gritos, bombas, sirenes, vidraças quebrando, pessoas correndo, estrondos. Pelo minarete da mesquita mais próxima, ouvimos uma pessoa avisar para que não saíssemos de casa. Meu tio, na época com nove anos de idade, ficou desesperado por ter deixado o irmão mais novo brincando do lado de fora. Os adultos correram desesperados para busca-lo. São e salvo, graças a Deus. Estava sentado na escada, em frente à nossa casa, paralizado de medo e não conseguiu se mexer para abrir o portão de madeira e entrar.
Outro alarme vindo da mesquita e mais um pedido para que ninguém saísse de casa. Os soldados jordanianos, armados até os dentes, faziam revistas nas casas à procura de membros de um grupo revolucionário palestino que tinha acabado de transgredir as leis da Jordânia. Mais medo e repressão. Entraram na nossa casa derrubando o portão de madeira. Minha avó perdeu o equilíbrio e caiu no chão. Os homens da casa estavam trabalhando e os mais jovens eram jovens demais para encarar aqueles soldados.
Revistaram tudo, derrubaram tudo, pisaram na massa de pão que minha avó tinha acabado de preparar, quebraram o vaso de flores da mamãe e rasgaram as fraldas de pano penduradas no varal.
É claro que não encontraram nada, mas eles tinham ordens de revistar todas as casas dos palestinos que tinham acabado de se instalar na Jordânia. Nós já estávamos lá a cinco anos, mas mesmo assim não nos pouparam.
Aquele grupo de insurgentes palestinos tinha acabado de macular a nossa relação com um país que nos acolheu, abrindo suas fronteiras, e permitindo que lá ficássemos até resolvermos a questão da invasão e ocupação das nossas terras.
É claro que os jordanianos se sentiram traídos e generalizavam a acusação contra todo e qualquer palestino. Depois do inferno da guerra e da fuga, veio o inferno da discriminação. Mas durou pouco. Cerca de um ano, até as coisas se acalmarem novamente.
Eu tinha cinco anos. Ouvia os adultos conversando e sintetizava algumas informações do tipo: temos que ficar calados, temos que nos proteger, temos que manter nossos empregos, não temos comida suficiente, cortaram o suprimento de farinha, o governo vai diminuir o suprimento de alimentos, a Cruz Vermelha está sem remédios. Meus irmãozinhos Bassel e Nael eram bebês. Meus tios Amin e Munir eram crianças. Toda a família vivia numa casa de dois cômodos e um pátio. Minha mãe sonhava em ter sua própria casa. Era a única estranha na família e por conta da sua timidez, mal ouvia-se sua voz. Passava o dia cuidando dos filhos, ajudando a minha avó e suportando o mau humor de uma tia que criticava a tudo e a todos.
Mesmo assim, no meio de tanto caos, tinhamos os nossos momentos felizes, quando meu pai voltava do trabalho numa fábrica de uniformes, onde ele e meu avó eram alfaiates. Eles chegavam sempre com alguma coisa nas mãos. Meu pai sempre trazia balinhas e meu avô os biscoitos. Meu avô contava piadas sobre o patrão carrancudo e mal-humorado. Meu pai ria. Todos riam. Meu avô era sinônimo de alegria.
Esqueciamos a nossa condição de refugiados e fingiamos sermos cidadãos comuns num país que nos abrigara. Mas aí começavam os barulhos ensurdecedores, que nos faziam voltar à realidade e lembrar que continuávamos num estado de guerra. E foi assim, durante muitos e muitos anos.
como sempre, magnífica Jihan :)
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