Ganhei um presente muito especial hoje. Tive o prazer de conhecer uma senhora deliciosamente simpática. Sabe aquelas pessoas que te transmitem paz? Pois é! Uma septuagenária de olhar doce e face serena.
Quem a vê, pensa que aquela mulher teve uma vida bastante tranquila. Mas como as aparências enganam, eu me enganei. Por traz daquele olhar doce e daquela face serena existe uma sobrevivente. Sim, uma sobrevivente.
Quem tem a minha idade, certamente já ouviu falar do massacre de Deir Yassin.
Deir Yassin era uma pacata cidade do interior da Palestina, onde os moradores viviam das pedreiras, extraindo rochas, cortando-as em formato de tijolos e vendendo seu produto para a construção de casas. Numa madrugada tranquila, por volta das 4:00 horas da madrugada, enquanto as famílias desta pacata cidade dormiam, os soldados israelenses se vestiram com trajes palestinos, usando inclusive a hata para não chamar a atenção, cercaram a cidade, invadiram as casas e mataram todos os que encontravam pela frente. As ruas da cidade viraram um verdadeiro mar de sangue.
Nesta época, Nassima tinha 13 anos. Estava dormindo, quando uma vizinha adentrou sua casa, baleada na barriga e avisou a família da invasão. O pai de Nassima ordenou que todos se escondessem num curral, debaixo do feno, até verificar o que estava acontecendo. Ele pertencia às forças de resistência. Empunhou sua arma, chamou os irmãos a saiu, voltando logo em seguida para mandar a família fugir pelos fundos da casa e se esconder no pomar de oliveiras.
Nassima me contou que nesta mesma noite haviam assassinado Abdel Kader Al Husseini, líder da resistência palestina, na cidade de Kastal e que por conta do velório e da tristeza dos membros das forças de resistência, sua cidade não pôde ser socorrida à tempo. Como o pai dela era membro das forças de resistência, ele havia recebido, dias antes, um baú repleto de munição, que estava guardado dentro de casa e que devido à explosão de uma bomba perto da parede do quarto, um armário pesado de roupas caiu por cima do baú de munição. Este acidente salvou a vida da família, porque os israelenses não viram nem armas nem munição na casa quando a invadiram, senão teriam assassinado a todos.
A invasão durou até as primeiras horas do dia, quando os israelenses pararam de atirar e receberam ordens de começar a contagem de mortos, reféns e decidir quem mais morreria e quem seria liberado para fugir.
Um fato curioso que ocorreu naquela madrugada é que as forças israelenses pretendiam invadir a cidade com tanques de guerra, jipes e caminhões, porém como a chegada deles já era prevista pelos moradores e pelas forças de resistência, eles abriram uma vala na rua que dava acesso à cidade. O primeiro tanque a tentar atravessar, caiu na vala impedindo o acesso dos outros, fato que obrigou os israelenses a invadirem a cidade à pé. Talvez se tivessem invadido a cidade com tanques, certamente a tragédia seria bem maior.
Nassima me disse que assim que amanheceu, ela e os outros moradores saíram de seus esconderijos e foram ajudar na retirada dos feridos de dentro das casas. Porém, uma mulher ferida que estava sendo carregada por ela e outro homem, foi novamente alvejada pelos judeus e morreu, assim como o homem que a ajudava. Ela fugiu novamente e escondeu-se até ser resgatada pelo restante da família.
Ela nem percebeu que havia ferido a perna na fuga, o que dificultava seu caminhar por entre as oliveiras.
Como a invasão não se restringiu aos assassinatos, mas incluiu também estupros e sequestros de crianças e adolescentes, alguns pais preferiam matar os próprios filhos antes de morrer à vê-los nas mãos dos selvagens israelenses.
Neste momento do relato, Nassima ficou com os olhos cheios de lágrimas e segurou o choro para me contar um pouco mais da tragédia que viveu. Nassima me disse que na manhã daquele dia, algumas mães corriam pela ruas aos gritos, desesperadas à procura de seus filhos. Pais juntavam pedaços do que restou de suas famílias para enterra-los com dignidade, crianças muito pequenas choravam dentro de casas, onde todos os outros membros da família haviam sido assassinados, enquanto os selvagens israelenses enfileiravam os corpos para fazer sua contagem e decidiam sobre o destino dos reféns, na maioria rapazes adolescentes. As mulheres e crianças foram liberadas para fugir, desde que não levassem absolutamente nada, além da roupa do corpo. Ninguém pôde sequer levar uma foto da família ou um objeto de estimação. Os selvagens israelenses apenas diziam que tudo agora pertencia à eles.
Nassima teve sorte, se é que sobreviver à tamanha tragédia pode ser considerado sorte. Sua família saiu intacta da tragédia e conseguiu fugir para uma cidade vizinha. Porém seus parentes, seus amigos e seus vizinhos foram todos assassinados brutalmente.
Nassima carrega no rosto as feições de quem viu o terrorismo israelense de perto. Nassima perdeu sua adolescência em meio ao medo de outra invasão e de outra tragédia.
Nassima casou-se aos vinte anos com seu primo e reconstruiu sua vida no Brasil. Quando a indaguei sobre a sua vinda às terras tupiniquins, Nassima abriu um sorriso largo e me disse que o Brasil é o melhor lugar do mundo para se viver. Basta que aqui, os palestinos foram recebidos de braços abertos e puderam reconstruir suas vidas, gozando dos mesmos direitos e deveres dos cidadãos brasileiros.
Aos que estão imaginando que Nassima guarda alguma amargura de sua tragédia pessoal, enganam-se. Nassima é uma mulher feliz, religiosa e grata por toda a sorte e felicidade que Deus lhe deu.
Nassima é um verdadeiro exemplo da mulher palestina: Forte, segura, otimista e que transformou sua tragédia pessoal numa verdadeira lição de vida.
Obrigada Nassima!