sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Hidaya

Ela abriu os olhos e viu que ainda estava escuro. Tentou dormir novamente, mas seus pensamentos não lhe davam sossego. Levantou então a cabeça para ver as horas. 05:25 da madrugada. Estava quase na hora de rezar. Finalmente conseguiu acordar antes da mãe. Para mostrar sua disposição, correu para a cozinha e acendeu o fogareiro para preparar o chá.
Era um dia especial. Receberiam visitas. Logo ouviu-se o chamado do "Imam", vindo da única mesquita da cidade. Apressaram-se todos para o ritual de purificação e em seguida para a oração do fajr, o alvorecer.
Hidaya não conseguia se concentrar e pulou, sem querer, alguns versos do Alcorão, tendo que repetir a oração. Lá fora, os raios de sol começaram a se espalhar por todo lado. Para Hidaya os segundos pareciam horas infinitas. Seu pai, Ibrahim, sentou-se no tapete que ficava no centro da sala e sua mãe foi preparar o café da manhã. Assou o pão no forno de barro, serviu o chá, arrumou o Homos numa travessa, enquanto Hidaya cortava os tomates e pepinos.
Seu irmão mais velho, Kamel, percebeu que Hidaya estava inquieta. Sabia o porquê. Era o dia em que receberiam a visita do tio Saleh e família. Sabia também que Hidaya nutria um amor secreto pelo seu primo Bassam. Logo, começou a atormenta-la com aqueles olhares insinuantes e perguntar por que alisara o cabelo na noite anterior.
Por nada, respondeu Hidaya, com o coração aos pulos. Temia que seu irmão revelasse o que ela tanto lutava para esconder.
Era Sexta Feira, dia de feriado e seu pai chamou Kamel para dar uma volta pela cidade, antes da oração sagrada. Hidaya sentiu um imenso alívio ao se livrar dos olhares sarcásticos do irmão. Enquanto isso, ela e a mãe prepararam a casa e a comida para receber a tão esperada visita.
Onze horas. Estava ansiosa. Correu para se enfeitar. A mãe, Mariam, sabia o que se passava no coração da filha, mas evitava tocar no assunto. Doce e terna, Mariam assumia muito bem o seu papel de guardiã da família. Por outro lado, sabia que Bassam era um excelente rapaz, que terminou seus estudos e estava bem empregado em Jaffa, no litoral norte da Palestina. Porém, angustiava-se com a idéia de não ter mais a filha por perto, caso o pedido de casamento fosse feito e aceito.
Meio dia. As visitas chegaram. Mariam recebe-os como de costume. Cumprimenta a todos e informa ao tio Saleh e a Bassam que seu marido e seu filho foram para a mesquita. Os dois então despedem-se e dirigem-se à mesquita. Tia Anissa, mãe de Bassam, era uma mulher sorridente, agradável porém misteriosa. Por mais que Hidaya se esforçasse, nunca conseguia ler seus olhos.
Mariam sentou-se com tia Anissa, enquanto Hidaya servia o chá. Tia Anissa não tirava os olhos de Hidaya e fez comentários elogiosos sobre sua beleza e juventude. Hidaya mal conseguia disfarçar sua ansiedade. O chamado do "Imam" ecoou pela casa e as tres mulheres prepararam-se para rezar. Formaram uma fileira e oraram com uma simetria quase ensaiada.
Meia hora depois, os homens estavam de volta. Kamel entrou falando alto e dando as boas vindas ao tio Saleh e à Bassam, enquando Ibrahim falava baixinho com tio Saleh.
Almoçaram makloube, um tipo de galinhada à moda palestina, e salada.
Hidaya manteve o olhar baixo durante todo o almoço, temendo que lessem sua mente através de seus olhos. Bassam também. Assim que terminaram, Ibrahim ordenou que Hidaya fosse preparar um café. Era a senha pela qual tanto esperava.
Na Palestina, quando um pai manda a filha preparar o café e servir para as visitas, significa que ela será pedida em casamento.
Hidaya tentara esconder suas mãos trêmulas e seu rosto enrubescido, mas em vão. Tio Saleh levantou-se e fez ao pai de Hidaya o pedido formal de casamento. Ibrahim sorriu, expressou sua satisfação e disse que tudo dependia da vontade de Hidaya, sua única e preciosa filha. Hidaya entra na sala e todos ficam em silêncio. Ela serve o café em meio à um suspense quase letal para o seu frágil coração. Ibrahim recebe um sinal positivo de Mariam e conta à filha sobre o pedido feito pelo tio Saleh. Hidaya responde que a vontade de seu pai é a sua vontade também. Ibrahim sorri, aperta a mão de tio Saleh e o compromisso está selado.
Anissa abraça Hidaya, enquanto Mariam chora de emoção. Hidaya e Bassam não se olharam.
Tres meses depois, aconteceu o tão esperado casamento. Hidaya estava no auge de sua felicidade. Seu noivo era o seu escolhido, seu vestido branco era lindo, o salão estava repleto de flores brancas e vermelhas e todas as mulheres à sua volta cantavam e dançavam, enquanto outras tatuavam suas mãos e pés com henna.
De longe, ouviram-se os gritos dos homens, que entoavam cantigas de casamento. Traziam o noivo nos ombros, revezando-se durante o percurso. Não era longe, mas para Bassam, foi o caminho mais longo de sua vida.
Ao entrarem na casa, Ibrahim e tio Saleh leram a Fatiha, os versos do alcorão que selam o casamento. Bassam tirou de seu bolso uma aliança bem larga e reluzente e colocou no dedo de Hidaya. Ela fez o mesmo. Bassam levantou o véu para ver o rosto de Hidaya e entregar-lhe as jóias que seriam seu dote. Pela primeira vez, Hidaya olhou nos olhos de Bassam e foi tomada por um medo imcompreensível. Nunca tinha percebido aquele olhar. Havia nele algo de assustador, quase diabólico. Bassam tinha o mesmo olhar de tia Anissa, porém com um brilho perverso.
Hidaya desmaia. Alguns minutos depois, quando recobra a consciência, pede para falar à sós com a mãe. Hidaya diz à Mariam que não quer mais se casar. Mariam tenta acalmar a filha, mas Hidaya estava irredutível. Mariam chama Ibrahim e conta, aos prantos, o pedido da filha.
Ibrahim não permite e ordena que a filha volte ao salão imediatamente. Era a honra de sua filha e sua própria honra que estavam em jogo.
Hidaya obedece ao pai e volta para o salão com a desesperança de um condenado à morte. Bassam segura-lhe a mão e a chama para partir. Hidaya levanta-se lentamente, olha para sua casa pela última vez e sai, sem dirigir o olhar para a sua família. Mariam se desespera, mas cala seu sofrimento. Ela pressentia que algo estava errado. Conhecia a filha como ninguém e sabia que Hidaya tinha alguma razão para rechaçar o noivo. Porém, a honra de Ibrahim não poderia ser manchada.
Assim que entou na casa de tio Saleh, Hidaya pediu para sentar-se, mas tia Anissa não deixou. Mandou que trocasse seu vestido de noiva e a ajudasse a preparar o jantar. Tio Saleh manteve-se calado, apesar dos olhares de súplica da sobrinha. Bassam estava do lado de fora, falando com um homem desconhecido.
Terminado o jantar, chegou a hora que Hidaya mais temia. Ficaria à sós com Bassam. Seu coração gelou enquanto sentia as mãos de Bassam arrancarem suas vestes. Tentou resistir, mas Bassam era robusto, violento e irredutível. Hidaya se entregou à força bruta do marido, enquanto suas lágrimas escorriam quentes pela face, quase cortando sua pele.
Quando Bassam finalmente dormiu, Hidaya levantou-se devagar e sem se preocupar com sua nudez, saiu do quarto, seguiu em direção à cozinha, derramou querosene sobre o próprio corpo e ateou o fogo.

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