segunda-feira, 7 de junho de 2010

Operação tiro no pé

Concordo com o artigo, exceto pelo último parágrafo, pois nosso caro amigo Antonio Luiz C. Costa esqueceu-se de um detalhe importante: o financiamento dado pelo governo americado à indústria bélica israelense tem como fonte os multimilionários judeus-americanos e não o governo americano em si. Como financiadores diretos do governo americano, deixam os presidentes daquele país  sempre de mãos amarradas, mesmo que queiram adotar posturas mais moderadas em relação à Israel. Basta verificar os discursos de Obama antes e depois de assumir o governo.

Carta Capital
Operação tiro no pé

07/06/2010
Antonio Luiz M. C. Costa
Nosso Mundo
O ataque à Flotilha da Paz foi o maior revés que Tel-Aviv já causou a si mesma.
O GOVERNO de Israel está se tornando o inimigo número l do futuro de seu povo. Em julho de 2006, o ataque ao Líbano, que visava humilhar o Hezbollah e induzir o povo libanês a repudiá-lo, prestigiou o movimento xiita à custa da imagem de Israel como país responsável e equilibrado e de seu exército como competente e infalível. O ataque a Gaza em 2008-2009, apelidado Operação Chumbo Fundido, com o pretexto de responder a pequenos mísseis vindos do território palestino, quis minar o apoio popular aos fundamentalistas do Hamas, mas teve o efeito contrário e multiplicou as críticas a Israel em todo o mundo.
Mas o ataque à Flotilha da Paz de 31 de maio foi o mais espetacular dos tiros no pé de Tel-Aviv. Até os maiores paladinos ao sionismo, incluindo a maior parte da imprensa de Israel e muitos dos grandes jornais dos EUA, criticaram o governo de Benjamin Netanyahu em seus editoriais - se não por sua desumanidade, ao menos por sua estupidez e incompetência.
Para Israel, tratava-se de mostrar que não toleraria desafios ao bloqueio à Faixa de Gaza. imposto desde janeiro de 2009 para quebrar a moral da população palestina e voltá-la contra o Hamas, que controla o território. Israel exigiu que a frota humanitária se dirigisse ao porto israelense de Ashdod, de onde seria encaminhado a Gaza o que Tel-Aviv permitisse. Os ativístas recusaram a proposta. A maior necessidade da região são materiais de construção, principalmente aço e cimento, proibidos por Israel com o pretexto de que serviriam à fabricação de armamento e construção de túneis e fortificações pelo Hamas. Obviamente. não havia armas: os navios foram vistoriados em portos gregos e turcos.
Mesmo assim, fuzileiros israelenses abordaram os seis navios em águas internacionais, mataram a tiros nove ativistas (oito turcos, um turco-americano) e feriram dezenas, às 4h30 da madrugada. Segundo Israel, os comandos foram agredidos e reagiram a bala. Como se não bastasse o contrassenso de forças especiais armadas até os dentes alegarem "legítima defesa" ao atacarem um navio desarmado em águas internacionais, sua chancelaria enviou a órgãos da imprensa de todo o mundo fotos das "armas" dos ativistas: bastões de madeira, facas de cozinha, ferramentas e estilingues.
Segundo o testemunho da deputada árabe-israelense Hanin Zoabi. que cuidou dos feridos, e da cineasta brasileira Iara Lee, também presente no navio, os fuzileiros jogaram bombas de gás e atiraram antes de descer ao convés. "Esperávamos que atirassem nas pernas ou para o alto, mas foram direto à cabeca dos passageiros", contou a brasileira. Outros testemunham que um ativista foi morto depois de se render e um jornalista abatido à queima-roupa ao fotografar a acão. Mais tarde, ao tentar dar seu testemunho no Parlamento israelense. Zoabi foi agredida e impedida pelos deputados da direita de falar.
Os sobreviventes não hospitalizados ou imediatamente expulsos foram presos e pressionados a assinar uma confissão de entrar ilegalmente em território israelense, quando foram capturados em águas internacionais e forcados a desembarcar no país, ao qual não pretendiam se dirigir. Mas a pressão internacional e a ameaça de ruptura de relações com Ancara acabou por forçar Israel a deportar os ativistas para a Turquia sem mais exigências.
As 10 mil toneladas de carga, no valor de 20 milhões de dólares, incluíam alimentos, cimento, vigas de aço, casas pré-fabricadas, material escolar, brinquedos, cadeiras de rodas e camas hospitalares. Acompanhavam-na cerca de 680 pessoas de 37 países, inclusive a norte-irlandesa Máiread Corrigan (Nobel da Paz de 1976), o escritor sueco Henning Mankell e parlamentares europeus e árabe-israelenses, inclusive Raed Salah, ferido pelos fuzileiros. A iniciativa foi apoiada por personalidades e organizações insuspeitas, inclusive o arcebispo sul-africano Desmond Tutu, Nobel da Paz.
Três navios eram da ONG turca IHH, dois de organizações gregas e um do estadunidense Free Gaza Movement. Cinco outros deveriam tê-los acompanhado, mas foram sabotados por agentes do Mossad, inclusive o que deveria ter sido o primeiro a chegar a Gaza: o irlandês Rachel Corne, cujo nome homenageia uma jovem estadunidense que morreu ao tentar defender uma casa palestina de uma escavadeira israelense.
Israel defiberadamente deixou partir os navios da IHH, que considera "simpatizante do terrorismo", para servir de exemplo. A organização foi banida de Israel, que a acusa de dar ajuda ao Hamas, à Al-Qaeda e à insurgência sunita no Iraque, mesmo se tem apoio do governo turco, liderado pelos islamistas moderados do Partido da Justiça e Desenvolvimento. E mesmo se, desde sua ação na Bósnia em meados dos anos 90, são reconhecidos os seus serviços em várias partes do mundo, que lhe valeram um assento no conselho consultivo da Unesco. Atua em países dos Bálcãs e no Paquistão. Líbano, Indonésia, Iraque e várias nações da África, onde oferece cirurgias de catarata, cuidados de saúde e construção de poços.
Não dá para escapar da analogia com o Exodus, o navio de imigrantes judeus sobreviventes do genocídio nazista que, em 1947, partiu da França para a Palestina então britânica e foi detido pela Royal Navy em águas internacionais. Também naquela ocasião, os fuzileiros encontraram resistência e a reprimiram com violência, deixando três mortos e dezenas de feridos. Ao deter e deportar os judeus, os britânicos mostravam que não tolerariam desafios à sua política de restringir a imigração judaica. Mas viram a opinião pública mundial voltar-se contra eles, à medida que a epopeia se desenrolava diariamente nos jornais.
A viagem fora organizada pela terrorista Haganah, organização paramilitar judaica responsável por atentados contra britânicos (bombas e reides contra ferrovias, bases e delegacias de polícia) e palestinos (inclusive o atentado contra o Hotel Semiramis de 1948, no qual morreram 26 pessoas) e que veio a ser o núcleo do exército de Israel Os passageiros, desembarcados à força em Hamburgo, agrediram os soldados e deixaram atrás de si uma bomba, antes de serem levados a campos de concentração. Nem por isso deixaram de ser respeitados e admirados e os britânicos de serem comparados aos nazistas.
A odisseia de 1947 conseguiu tocar sentimentos que os milhões de mortos do Holocausto haviam embotado. Foi um fator importante da antecipação do fim do mandato britânico e do reconhecimento de Israel pela ONU. O drama naval de 2010, da mesma maneira, criou uma comoção mundial que os 1,2 mil civis mortos na ofensiva no Líbano, os quase mil da Chumbo Fundido e a catástrofe humanitária que desde então se abate sobre a Faixa de Gaza não conseguiram. E como se as grandes tragédias precisassem ser reencenadas em pequena escala para serem compreendidas. As vítimas deixam de ser estatísticas para serem pessoas com rostos, nomes e biografias e a desproporção da agressão fica mais óbvia.
É impressionante como o governo de Israel se recusa a tirar lições da história do seu próprio país. Enfrentou o que era obviamente um problema de imagem e de relações internacionais como mais uma ação militar. Para um governo com tantos recursos militares e de inteligência à disposição, havia opções.
Não se culpem os fuzileiros, instrumentos treinados para matar e enviados com a ordem de tomar os navios a qualquer custo, sem consideração para a possibilidade de resistência. O responsável é quem os enviou: o ministro da Defesa Ehud Barak, trabalhista que em outras ocasiões pareceu ser uma voz moderada dentro desse gabinete belicoso, a ponto de criticar colegas por provocarem desnecessariamente os palestinos com novas construções em Jerusalém Oriental. Para o editorial do Valor Económico de 3 de junho, suas ações são a maior evidência da "decomposição moral e política de Israel".
A decomposição mostra-se principalmente na incapacidade de considerar qualquer ângulo que não seja o próprio - nem sequer o dos interesses reais do país, mas os das vantagens políticas imediatas. Escalam a brutalidade para satisfazer um eleitorado convencido de que o mundo é antissemita e só o terror os fará respeitados. Ao agir como se a opinião mundial fosse desprezível, fazem seu país ser desprezado. Tornam cada vez mais real a fantasia de isolamento, sem perceber que seu pressuposto não se sustenta: por mais que recorra ao terrorismo de Estado, Israel não tem como sobreviver isolada.
Se até os EUA tiveram de aprender com Bush júnior, que não podem impor unilateralmente sua vontade ao mundo, que dizer de um pequeno país que depende da verba de Washington para sustentar suas Forças Armadas? O cineasta brasileiro Sílvio Tendler diz-se "judeu identificado com as melhores tradições humanistas de nossa cultura" em carta aberta ao governo israelense e atribui a todos os seus integrantes, sem excecão, o "Prémio Jim Jones por estarem conduzindo todo um país para o suicídio coletivo".
Não se trata apenas de riscos para a sobrevivência a longo prazo, mas de questões bastante concretas e imediatas. A ação de Israel prejudicou irremediavelmente o relacionamento com a Turquia, país-chave da região, ponte indispensável entre os interesses do Ocidente e do Oriente Médio, escala obrigatória de grande parte das importações de Israel (inclusive quase todo o petróleo) e, até recentemente, seu único aliado no mundo muçulmano.
Segundo o chanceler turco Ahrnet Davutogiu, o ataque de Israel teve em seu país efeito comparável aos atentados de l1 de setembro nos Estados Unidos: cidadãos turcos foram mortos e feridos não por terroristas, mas por decisão política dos líderes de um Estado com o qual tinham relações razoavelmente amistosas (fora as reclamações israelenses contra um seriado sobre Gaza que os pintou como vilões na tevê turca). O embaixador turco em Tel-Aviv foi chamado de volta e exercícios militares conjuntos, cancelados. Mais de 10 mil pessoas saíram em passeata contra Israel em Istambul e Ancara e os ativistas deportados de Israel foram recebidos como heróis por uma multidão de 20 mil.
Além dos países muçulmanos, União Europeia, Rússia e a maioria dos países da Ásia, África e América Latina (inclusive Brasil e Japão) condenaram sem meias palavras a ação de Israel. A Nicarágua rompeu relações diplomáticas com Tel-Aviv, e Equador e África do Sul retiraram seus embaixadores. O Egito, sob pressão do mundo árabe e de seu próprio povo, reabriu a fronteira com Gaza, enfraquecendo o bloqueio. A Irlanda ameaçou com ruptura caso Israel ataque o Rachel Corrie que, a caminho para Gaza, deve levar uma sobrevivente do Holocausto: Hedy Epstein, de 85 anos, que apoia a causa palestina desde os massacres de Sabra e Chatila em 1982.
Os EUA e o Canadá tiveram que ceder a turcos e europeus na Otan, que tomou posição em relação ao que foi, sem dúvida, um ataque a cidadãos de um de seus integrantes por um país de fora da aliança militar do Ocidente: condenou a ação de Israel e exigiu a libertação imediata dos prisioneiros. Os ELA enfrentarão mais dificuldades para aprovar resoluções contra o Irã na ONU. Hillary Clinton juntou-se ao consenso da ONU por uma resolução pelo fim do bloqueio de Gaza, mas isso não será suficiente. Cada vez mais, é Israel, não o Irã, que se mostra irresponsável demais para ter armas nucleares.
E Tel-Aviv acabava de sofrer uma derrota diplomática. Os 189 integrantes do Tratado de Não-Proliferacão Nuclear (TNP) - incluindo o Ira - aprovaram uma resolução para tornar o Oriente Médio uma "zona, desnuclearizada, a ser referendada em 2012. De nada valerá sem a adesão de Israel, que repudia o TNP, mas o vexame só foi possível com a anuência dos EUA. Que provavelmente poderiam ter impedido, se quisessem, a publicação das provas da cooperação nuclear do governo de Yitzhak Rabin, incluindo o atual presidente Shimon Peres, com o apartheid dos anos 70. Podem ser as primeiras advertências de que seu apoio pode não continuar incondicional.
A sobrevivência de Israel já ficará bem mais difícil sem o apoio da Turquia. Se, Washington, além disso, concluir que apoiar Tel-Aviv lhe custa mais do que vale, o país se verá numa situação insustentável.

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