segunda-feira, 3 de maio de 2010

Legado

- Que coisa chata!
- O que menina?
- Esse negócio de bordar pontinho por pontinho.
- (Risadas).
- Eu tenho mesmo que fazer isso?
- Tem sim!
- Mas vó....
- Pára de reclamar e borda!
- E o que eu ganho com isso? Alguns danos na minha visão?
- Ganha conhecimento e aprende a ter paciência?
- Minha paciência já se esgotou à muito tempo. E parece que nem saí do lugar. Estou bordando à horas esta flor e ela parece que não vai acabar nunca.
- Mas é assim mesmo. Ou você acha que ponto cruz é brincadeira?
- Por que não inventam uma máquina para fazer isso?
- E quem te disse que já não existem máquinas que bordam em ponto cruz e muitos outros pontos?
- Ah é? São caras?
- Até que não.
- E por que você não compra uma?
- E perder a sua companhia de todas as tardes? Nem pensar!
- Ah vó, qual é?
- É sério! Você percebeu que este é o único tempo que temos juntas?
- Mas precisamos passar esse tempo bordando?
- É claro que sim. Eu só tenho este legado para te oferecer. Os bordados palestinos são nossa herança. É a única coisa que você levará para o resto da sua vida. Pode acreditar, um dia você vai me agradecer por isto.
- Sei...
- Eu sei que você não entende a dimensão do que estou te ensinando. Nem poderia. Você só tem 14 anos. Mas, um dia, você vai entender.
- Vó...por que você sempre fala isso? Quando você me ensina a cozinhar, você diz a mesma coisa.
- Jihan, você é minha esperança. Eu sei que, um dia, você vai ter orgulho de mim e de tudo o que estou te ensinando. Isto não é porque você precisa, mas porque vai ser seu orgulho. Eu sinto isso!
- Ah, tudo bem! Vamos bordar!
- Vamos!
- Vó, me conta de novo aquela história de quando você bordou o seu vestido de casamento. Quanto tempo precisou para borda-lo?
- Um ano. Eu queria ser a noiva mais bonita. Fiz uma trama linda no vestido em vermelho bordô. E meu véu era enorme. Bem fininho. Ficou lindo.
- Você era apaixonada pelo meu avô?
- Eu não o conhecia. Só o conheci no dia do casamento.
- Eu sei, você me contou. É estranho.
- Na época não era. Quem escolhia o noivo era o pai da noiva.
- É, eu sei. Mas e depois?
- Depois nos conhecemos aos poucos. Como já estávamos casados, a aceitação das qualidades e defeitos torna-se algo natural.
- Mas como você fez para aceitar os defeitos?
- Ora, e quem não tem defeitos? Eu também tenho os meus e seu avô os aceitou. Era tudo muito mais simples. A gente não vivia numa fogueira de vaidades, como as pessoas vivem hoje em dia. A gente se casava e sabia que era para o resto da vida. Então, tinha que aceitar, conviver e aprender a rir dos defeitos, o que tornava tudo muito mais fácil.
- Parece simples.
- Eu sei que não é. Você viveu fora do nosso contexto, em outra cultura, onde os defeitos acabam contando mais que as qualidades. Mas aprenda a dar valor no que há de bom nas pessoas e você vai viver mais feliz.
- Argh! Furei o dedo!
- Eu disse para você usar o dedal, mas você é cabeça dura!
- Ele me incomoda!
- Cuidado menina! Vai manchar o tecido de sangue.
- Tá, eu vou lavar a mão.
- Vai sim!
- Vó, Estou começando a ficar com fome
- Ai meu Deus! Esqueci! Está na hora de colocar o pão para assar. Já já, seus tios chegam do trabalho.
- Hummm...estava pensando nisso.
- Enquanto eu asso o pão, vai misturando os ovos e corte a cebola. Quero fazer uns pães com zaatar e azeite e outros com ovos e cebola.
- Ai que delícia! Vó, eu amo sua comida!
- É por isso que eu te ensino a cozinhar. Assim você vai se virar sozinha no dia em que voltar ao Brasil. E ainda vai ensinar a sua mãe a fazer o pão do jeito certo.
- Ah vó, não fala assim! A mamãe é muito atarefada.
- Eu sei minha filha, mas o nosso pão não pode se perder no tempo. Eu quero que você me prometa que vai fazer o pão para o seu pai, quando voltar ao Brasil. Assim, ele mata a saudade e você não esquece de como se faz um pão palestino de verdade.
- Tudo bem, eu prometo! Agora vamos, senão eu vou morrer de fome!
- (Risadas). Sempre exagerada! Vamos sim!

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