terça-feira, 4 de maio de 2010

Meu Pilar

- Vai ensaiando.
- Mãe, cansei.
- Ah não.
- Daqui a pouco não vou ter mais voz.
- Só mais um pouquinho.
- Mas eu já decorei tudo.
- Eu sei, mas a entonação não está boa em algumas partes.
- Então vamos dar um tempinho.
- Tudo bem, 15 minutos de descanso.
- Você parece um general.
- E você só quer moleza.
- Mas mãe....
- 15 minutos!
- Ok, mas se minha voz falhar na apresentação, não vai ser culpa minha.
- 14 minutos!
- Vou tomar um copo d'água.
- Mãe, por que eu tenho que ensaiar para tantas músicas, se só vou apresentar quatro?
- Porque as pessoas sempre querem nos testar e caso te peçam mais alguma, quero que você esteja pronta.
- O pior é que tenho que cantar e dançar.
- Eu sei que você dá conta do recado.
- Da última vez, eu quase desmaiei no final.
- Mas não desmaiou.
- Mas é cansativo. Enjoei do Sanaud!
- Sabe de uma coisa: esquece! Não precisa ensaiar mais. Você tem razão. É cansativo demais.
- (silêncio). Mãe, acho que posso ensaiar mais um pouquinho.
- Você é quem sabe.
- Posso sim, vamos lá! (1a. música). Então?
- Está bom, mas você perdeu um pouco o pique no final. Tenta dar mais ênfase à última frase.
- Ok. (canto a música de novo). Que tal?
- Ótimo! Perfeito! Muito bom mesmo!
- Ah, que bom!
- Filha, quando eu tinha a sua idade, meu sonho era ser cantora de ópera. Eu achava lindo o jeito daquelas divas, sempre glamourosas, bem maquiadas, sofisticadas e com aquelas vozes perfeitas. Mas, nunca tive talento para cantar. Mas você...você tem voz, tem presença no palco e para coroar, canta músicas da revolução palestina. Não podemos deixar que isso passe assim. Você nasceu para brilhar. Você é tudo o que eu sempre quis ser.
- Ah mãe, não exagera!
- É verdade! Não digo que você será uma diva, mas você tem carisma e pode ser o que quiser. Mas tem que se esforçar, porque senão a sua voz vai se perder com o tempo.
- Tactic tactic tactic....
- (Risadas). Deixa de ser palhaça e presta atenção ao que eu te digo. Não deixa a tua paixão pela música se perder. Você gosta de cantar. Tudo bem, não é ópera, mas é música da revolução. A gente sente a paixão na sua voz quando você canta. Isto é para poucos.
- Mas meu pai disse que não gosta disso, porque as pessoas falam mal de meninas que ficam se expondo.
- Seu pai é um ciumento. Ele liga demais para o que as pessoas falam, mas você tem talento. Não desperdice essa dádiva.
- Mãe, quando eu cheguei da Jordânia, você esperava me encontrar assim?
- Confesso que não. Você foi para lá ainda criança, seu único interesse era andar de bicicleta e ler gibis, eu nunca esperei encontra-la assim, tão interessada em política, na causa palestina, na nossa revolução e ainda por cima sabendo cantar.
- Foi o tio Amin quem me ensinou tudo. A gente conversava à bessa. Ele me levava ao clube com ele para ver as apresentações dos grupos palestinos que se apresentavam na clandestinidade. A gente até fugiu da polícia uma vez, mas depois ele foi preso. Ficou um ano na cadeia porque participava de um desses grupos.
- Eu sei. Além de fugir da guerra, nós sempre tivemos que ficar em silêncio nos países árabes e qualquer manifestação por parte dos palestinos é sempre vista como um ato de rebeldia. Nem nossas músicas nós podiamos cantar. Tudo era motivo para prisão. Seu pai também foi preso porque tinha uma tatuagem no braço com o nome dele e o simbolo dos fidaeyen (guerrilheiros palestinos).
- É, ele disse que até provar que ele não fazia parte das forças de resistência, ele apanhou muito.
- Se fosse só isso, mas era tanta crueldade com nosso povo, que nem vale à pena mencionar. Nós éramos vistos como intrusos, como pessoas que vieram tomar conta do que é dos outros, quando na verdade nós só queriamos um lugar seguro para ficar até que a guerra esfriasse um pouco e pudessemos voltar para a nossa terra. Como nunca esfriou, fomos ficando na Jordânia e depois viemos para o Brasil.
- Ainda bem.
- O que?
- Que viemos para o Brasil. Sabe mãe, é muito difícil viver num país onde não existe liberdade de expressão e onde as pessoas vivem com medo e de cabeça baixa.
- Mas acho que as coisas mudaram.
- Nem tanto. A tal da imprensa democrática que eles tanto alardeam só pode publicar o que é do interesse do governo. Quem ousar a se opor, acaba sendo preso e punido severamente.
- Eu tenho esperanças de que um dia isso vai mudar. O excesso de pressão acaba causando uma explosão. No caso deles, vai ser uma explosão social.
- Sábias palavras.
- Mas vamos deixar de conversa e voltar ao ensaio?
- Ah não!
- Pensou que ia me enganar, né?

Um comentário:

  1. que beleza saber disso, devia ser cansativo mesmo, mas quando tu cantava era quando a turma tinha tempo para uma aguinha, hehehe, taq tiq taq tiq.........

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